‘Golpe do cheiro’: Mulher diz que foi drogada por motorista de aplicativo e pulou do carro em movimento; ouça

Relatos de mulheres de tentativa de doping em viagens
 de aplicativos tem sido cada vez mais frequentes nas 
redes sociais. Paul Hanaoka/Unsplash

Grasiely Torreiro entregou à polícia nome do homem e informações do veículo, mas investigação não foi aberta porque, segundo a SSP, ela não expressou ‘vontade de oferecer representação criminal’

Há algumas semanas, o Brasil acompanha atentamente casos do “golpe do cheiro”, que consistiria em um motorista de aplicativo utilizar substâncias químicas para dopar passageiras mulheres que viajam sozinhas. Consistiria porque, segundo a Polícia Civil do Estado de São Paulo, ainda não há a comprovação do que realmente tem ocorrido e as investigações ainda precisam avançar. Até o momento, ninguém foi preso pelo suposto crime e também não se sabe a motivação dele — se teria finalidade de abuso sexual, de roubo ou sequestro, por exemplo. Ainda assim, os relatos de mulheres são muitos, como o da executiva de contas Grasiely Torreiro, de 34 anos, que chegou a jogar metade do corpo para fora da janela de um carro em movimento enquanto pedia socorro. O o motorista ignorou o pedido dela para parar o veículo quando se sentiu tonta dentro do automóvel.

Ouça o áudio
“Eu senti o meu corpo muito fraco, eu fiquei muito tonta, muito desnorteada, um peso no meu corpo. Foi um baque. Foi muito forte a reação, e eu estava extremamente sóbria nesse dia. Como eu já estava ciente [de histórias semelhantes], eu percebi na hora o que aconteceu. Pedi para o cara, o [motorista do] Uber parar o carro, que eu que eu iria descer. Nesse mesmo momento, ele travou a porta do carro e começou a subir os vidros. Eu tentei sair por dentro, mas não consegui, também coloquei minha mão por fora para sair e não consegui, porque eu estava bem fraca. Numa reação, sem pensar muito, eu joguei o meu corpo pela janela e fiquei metade dentro do carro, metade fora. Inclusive fiquei até com hematomas.”

Era 1 hora da madrugada do dia 4 de junho, um sábado. Grasiely Torreiro havia solicitado um veículo no aplicativo da Uber enquanto se despedia de amigos em um bar na Santa Cecília. Ela ia sozinha para a casa do namorado, também no Centro de São Paulo. A executiva afirma que, na ocasião, não havia ingerido bebidas alcoólicas ou feito uso de substâncias alucinógenas. Atenta a todas as informações fornecidas pela plataforma de transporte (nome e foto do motorista, marca e placa do carro), ela relata não ter percebido nada fora do comum ao entrar no veículo. Mesmo assim, por se sentir insegura ao se deslocar sozinha à noite, enviou a localização em tempo real para o namorado e um áudio, que gravou em voz alta, para que o motorista pudesse ouvir.

“Eu compartilhei o link da corrida com o meu namorado e também tirei o print das informações e mandei para ele. Até fiz um ‘teatrinho’ antes de guardar o celular, mandei um áudio, falei ‘eu peguei o Uber agora e chego em dez minutos, fica na frente me esperando, vou te mandar a localização'”, conta. Mesmo assim, a executiva não conseguiu evitar o golpe. Segundo ela, o motorista seguiu o trajeto indicado pelo GPS, que ela tentava sempre verificar no celular dele, fixado no painel do veículo. O homem usava máscara de proteção contra a Covid-19 e mantinha os vidros abertos, como recomendado pela plataforma de viagens para o período de pandemia. Mas, ao passar pela rua Luiz Porrio, na Bela Vista, que estava escura e sem movimento de pessoas, Grasiely sentiu-se tonta e com o corpo fraco sem explicação aparente ou visível no momento.

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“Comecei a gritar, só que não tinha ninguém, e fiquei batendo no teto do carro. Ele não falou nada em nenhum momento… em nenhum momento! A única reação dele ocorreu quando ele percebeu que eu percebi [o que estava acontecendo] e pedi pra ele parar o carro. Ele travou as portas e começou a subir o vidro. A minha sorte é que, no final da rua, tem [a rua] Santo Antônio, que é uma bifurcação, uma descida. Então, ele teve que freiar o carro para virar à direita.”

Sem saber como fugir da situação e sentindo-se fraca e tonta, Torreiro relata ter jogado parte do corpo para fora da janela, com o carro em movimento, antes que os vidros se fechassem completamente. Por isso, a executiva ficou com hematomas, já que o vidro travou no corpo dela. A situação só chegou ao fim quando o motorista precisou reduzir a velocidade do carro para fazer uma curva à direita, momento em que ela viu outras pessoas, em uma pizzaria, para as quais gritou socorro. Com dificuldade, ela conseguiu sair pela janela do veículo. Ao receber ajuda, encontrou uma mulher que se identificou como bombeira, que a examinou e afirmou que as pupilas dos seus olhos estavam dilatadas.

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“Saí do carro, consegui sair, completamente transtornada, muito tonta. Fui para o meio da avenida e as pessoas vieram me socorrer. Me levaram para dentro da pizzaria, e havia uma mulher lá que falou que era bombeira, ela olhou meu olho e disse que minha pupila estava muito dilatada. Eu estava completamente sob o efeito de uma substância que eu não sei qual, não tinha sequer cheiro. Eu só percebi porque foi um baque no meu corpo, a reação. Fiquei desesperada de medo. Porque foi tudo muito rápido e, se eu não tivesse tido essa reação, eu não teria conseguido sair [do carro], porque o efeito é muito forte.”

Em seguida, após se recuperar um pouco dos efeitos, a jovem registrou uma reclamação na plataforma e um boletim de ocorrência com policiais militares que foram acionados pelo próprio aplicativo da Uber. Na ocasião, ela afirma ter ouvido da PM que aquela era a segunda tentativa de “golpe do cheiro” que eles atendiam na mesma madrugada. No dia seguinte, Torreiro também registrou um B.O. em uma delegacia da Polícia Civil, que a encaminhou para fazer um exame de corpo de delito, para dar conta do hematoma. Toda a documentação, além de prints do perfil motorista — identificado apenas como Aloisio na plataforma e cuja avaliação era de nota 4,95, de um total de 5,00, além de dois anos e meio de atividade pela Uber —, marca e placa do veículo foram registrados pela vítima.

Apesar disso, o caso não foi para frente e ainda não está sendo investigado, quase um mês após registrado o B.O. Quando a reportagem da Jovem Pan acionou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), solicitando um posicionamento e o andamento das investigações, foi informada de que nenhum Boletim de Ocorrência referente a esse caso ou a outros semelhantes foi encontrado no sistema. Com a documentação da vítima em mãos, a Jovem Pan encaminhou os registros e teve como resposta do órgão apenas que o crime havia sido registrado como “lesão corporal” no 78º Distrito Policial (Jardins) e que a vítima havia sido “orientada quanto ao prazo para oferecer representação criminal”. Em outras palavras, a investigação não foi aberta porque a executiva de contas não expressou claramente sua vontade de “oferecer representação criminal”, embora estivesse seguindo todas as orientações da polícia até o momento. Uma questão burocrática da qual Grasiely Torreiro afirma não ter sido orientada adequadamente e nem sequer ter ouvido falar em tal expressão.

Segundo a delegada Jacqueline Valadares, titular da 2ª Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) da capital, é provável que a SSP não tenha encontrado o registro do caso dessa vítima nem de outros semelhantes porque a polícia ainda não tem uma tipificação clara para o que está acontecendo a partir dos relatos de doping dessas mulheres, dada a incerteza e imprecisão do que vem ocorrendo. “Ainda não tem nenhuma vertente mais específica. A princípio, a gente está apurando crime de uso de gás tóxico, que é um crime típico do código penal, e, a depender do andamento das investigações, essa tipificação pode ser alterada por um crime sexual, um crime patrimonial, a princípio na modalidade tentada, porque nenhum foi consumado. Não tem um diagnóstico fechado a respeito do tema. Como não há ainda algo em definitivo de que crime seria, não tem uma tipificação fechada, cada delegacia vem registrando de uma forma. Para fins estatísticos, é muito complicado”, explica a delegada.

Valadares ainda informa que, na delegacia em que atua, na Vila Mariana, vem investigando apenas um único caso sobre esse possível novo golpe. O único já registrado na unidade. Segundo ela, o maior problema é que os relatos, muitas vezes feitos nas redes sociais, não se transformam efetivamente em boletins de ocorrência e, consequentemente, em investigações. “A gente pede que todas as mulheres que tenham se sentido vitimadas nessa situação nos procurem para registro. Quanto mais mulheres nos reportarem — eu falo mulheres porque todos os casos que a gente ouve envolveram mulheres —, melhor conhecimento do cenário a gente vai ter. Para que se possa ver se é o mesmo motorista, se são motoristas que têm algum vínculo entre si. Além disso, também pedimos que as vítimas venham o quanto antes porque como, em tese, envolve um gás tóxico, ainda que algumas não relatem nenhum cheiro, é importante a realização de exame toxicológico.”

No caso investigado pela delegada da 2ª DDM, o relato da vítima envolve um cheiro estranho, fraqueza e tontura, mas a mulher pediu para o motorista parar o carro, ele encostou, e ela saiu do veículo. “Isso está sendo investigado. A gente já entrou em contato com o aplicativo, já conseguimos a qualificação, o motorista também já foi ouvido. Estamos no aguardo de alguns laudos periciais”, conta a Jacqueline Valadares. Segundo ela, os motoristas dizem que a hipotética substância utilizada seria alcool 70% ou gel, ou ainda aromatizadores, utilizados para manter o carro com o aspecto de limpeza.

Em relação à Uber, Grasiely Torreiro, diz ter registrado uma reclamação no aplicativo, contando toda a situação. “Quatro ou cinco dias depois, a plataforma entrou em contato comigo, pedindo para relatar o caso. Contei novamente tudo o que tinha acontecido, já pela quarta vez, porque antes eu expliquei por ‘direct’ no Instagram, no Twitter e pelo aplicativo, onde acionei a empresa. O suporte me falou que eu estava bloqueada para aquele motorista, para minimizar o risco de a gente se cruzar numa outra corrida e até seguirem as investigações”, relata.

O que dizem as empresas de transporte por aplicativo

Em nota, a Uber disse que tem conhecimento de apenas duas únicas denúncias sobre esse tipo de golpe que já tiveram investigação concluída pela Polícia Civil: uma ocorrida em Canoas, no Rio Grande do Sul, e a outra na cidade do Rio de Janeiro. “Em ambos os casos, as autoridades pediram o arquivamento após o inquérito policial, já que, de acordo com as investigações, não houve elementos de prática de crime. Especificamente no caso do Rio de Janeiro, o laudo pericial do líquido borrifado no veículo atestou se tratar de álcool 70%. Não foram encontradas outras substâncias de natureza tóxica, perigosa ou nociva”, informou a plataforma. “Nas demais denúncias mencionadas até o momento, muitas das quais surgem nas mídias sociais e são reverberadas pela imprensa, sem se checar o que apurou a investigação conduzida pelas autoridades policiais, não temos conhecimento de nenhum inquérito que tenha sido concluído e identificando elementos que comprovem o uso de quaisquer substâncias com o propósito de dopagem ou com o indiciamento do suposto motorista agressor. De qualquer forma, a Uber trata todas as denúncias com a máxima seriedade e avalia cada caso individualmente para tomar as medidas cabíveis, sempre se colocando à disposição das autoridades competentes para colaborar, nos termos da lei”, finaliza.

Sabendo que, muitas vezes, a população utiliza o nome da empresa “Uber” para se referir também a outros aplicativos de viagem e, a partir da observação da delegada Jacqueline Valadares de que há relatos do “golpe do cheiro” com motoristas de aplicativos variados, a reportagem entrou em contato também com a 99, empresa que presta o mesmo tipo de serviço e disputa o mesmo mercado com a Uber. Em nota, a 99 informou que tem uma política de tolerância zero para assédio ou violência sexual. Segundo a 99, a sua plataforma conta com inteligências capazes de identificar passageiras em maior situação de riscos e as direciona para motoristas homens melhor avaliados ou para motoristas mulheres. “Além disso, rastreiam comentários deixados após as corridas para detectar palavras e contextos que possam estar relacionados a assédio para que medidas cabíveis, como acolhimento às vítimas e banimento dos agressores, sejam tomadas. A 99 ainda disponibiliza câmeras de segurança, todas as corridas são monitoradas em tempo real e as usuárias contam com recursos de compartilhamento de rota com contatos de confiança, gravação de áudio e botão para ligar direto para a polícia”, diz a plataforma.

Por Pedro Jordão

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